domingo, 30 de dezembro de 2007





Perante os conteúdos sofríveis que a "caixinha mágica" nos vem oferecendo ultimamente, resta-nos dignificar o termo "televisão" invocando memórias que apelem menos à imagem e mais à audição. Não seria totalmente descabido, para este propósito, lembrarmos o mega hit dos Mão Morta; contudo a escolha mais acertada será mesmo rumarmos a Nova Iorque e lembrarmos os Television de Tom Verlaine. Sendo o cenário ideal para desenvolvimentos musicais e reinvenção de estilos, a Big Apple viu nascer, no final dos anos 70, uma das bandas mais influentes da cena punk-rock ou do rock sem demais designações. E a comunidade melómana que se agitava em redor do CBGB's nunca mais seria a mesma. Trinta anos depois, é o clube mítico nova-iorquino que se encontra moribundo - pasme-se -, ao passo que a memória da banda nova-iorquina continua bem viva. O destino inexorável dos TV enquanto banda de culto começou a desenhar-se logo após o lançamento deste primeiro registo. Marquee Moon foi inequivocamente recebido como obra-prima. O álbum, surgido em 1977, chegava aos escaparates em plena explosão punk (lembre-se que datam do mesmo ano Never Mind the Bollocks dos Sex Pistols e Rocket to Russia dos Ramones) e revelava a mestria de Tom Verlaine, Richard Lloyd, Fred Smith e Billy Ficca. No entanto, a sonoridade de Marquee Moon não correspondia exactamente ao mainstream dado a conhecer pelas formações afectas ao punk-rock e aludia a um estilo mais próximo de uma no wave do que da chamada new wave. A ideia implícita parecia ser criar uma alternativa sofisticada e criativa à atitude musical predominante. Tratava-se de uma originalidade calculada, estudada ao ponto de fazer surgir uma dinâmica sonora inédita. Assim, enquanto novas formações pareciam gravitar à volta da grande investida punk e seguir o mesmo rumo, os TV conferiam aos New York Dolls e a Patti Smith uma importância superior e, à semelhança destes, davam uma nova roupagem ao formato primitivo do rock (via punk-rock) que se havia instalado no meio musical.A proeza assentava fundamentalmente no cruzamento de guitarras entre Tom Verlaine e Richard Lloyd, com o primeiro a explorar linhas mais criativas que pudessem conjugar com a guitarra mais ao estilo punk de Lloyd. Ambos protagonizaram, no entanto, a título individual, solos incapazes de descolar da nossa memória. A abertura de Marquee Moon faz-se através da guitarra de Lloyd que abrilhanta "See No Evil"; Verlaine é irrepreensível nomeadamente em "Friction", onde é a sua guitarra a assumir o papel principal. Mas seria precisamente no tema-título que incidiria o ponto alto do disco, com as guitarras a complementarem-se em saudável despique. Ousar prolongar a faixa até aos 10 minutos (ao vivo chegam a ultrapassar os 20) não era um risco que muitos optassem por correr, mas quem ouve o resultado final não se arrepende do tempo gasto na escuta. À medida que o épico avança, as palavras de Tom Verlaine começam a ganhar maior significação e é, com total concordância da nossa parte, que o ouvimos anunciar "I'm in the high point of my life". De resto, o móbil de contornar os clichés do rock esteve também presente nas prestações do baixo e da bateria, com Smith e Ficca a alinharem na mesma corrente de exploração. Apesar de não chegarem propriamente a criar músicas de expressão livre, os TV foram transparecendo uma certa indiferença pela sublevação do punk, cujo som abrasivo em aceleração fazia por vezes com que a originalidade desaparecesse no tropel. Deste mal não viria a sofrer a música destes nova-iorquinos.Ao todo Marquee Moon reúne oito faixas de inegável calibre, onde importa descobrir igualmente a escrita de versos inesquecíveis. É, na verdade, um album onde as letras se encontram, também elas, desfasadas das palavras de ordem vindas das bandas da desordem. São palavras que podem aludir ao ambiente nocturno, à beleza (o refrão de "Vénus" é mesmo sublime) ou a ambientes funestos, mas mantêm sempre uma desconcertante e perturbadora evidência do seu peso literário. Ou não fosse Tom Verlaine (nascido Tom Miller) um apaixonado pela escrita, tendo optado pelo apelido Verlaine em homenagem a Paul Verlaine (consagrado escritor francês do século XIX). Daí que Marquee Moon tenha sido, mais do que parte integrante do mais fértil período punk, um exemplo do que o rock pode originar, uma prova que contradiz afirmações falaciosas de que o rock encerra fórmulas limitadas e previsíveis, podendo sucumbir a outras descobertas musicais. A herança dos Television diz-nos o contrário. Da luta pelo estatuto de referência obrigatória, poucos saem vencedores e, de entre os bafejados pela sorte, poucos o conseguem logo num primeiro round. Os TV acertaram à primeira e concentraram a atenção depositada na banda em Marquee Moon, relegando para um plano amplamente secundário os demais registos constantes da sua discografia. Numa altura em que estão decorridos quase 30 anos sobre a primeira edição do álbum, desconfiamos que bandas como os Interpol ou The Strokes foram vítimas de um processo de clonagem que remonta a 1977. Chegou a hora de responsabilizar os culpados e citar Tom Verlaine em "Prove It": "this case is closed".